terça-feira, 12 de maio de 2015

| Edmar Conceição |


Encontros




Manhã


Ainda estava chovendo, mas a garoa tímida não ofuscava a precisão e o encanto de seus passos. Quase todas as manhãs dos meus doze anos, dedicava uma vigília calculada para alcançá-la antes do prédio escolar. Embora o cheiro do concreto molhado fosse persistente, nada me impediria sorver a lavanda que percorria no seu corpo, ungindo-me e trazendo-a para mim naqueles poucos metros que nosso itinerário nos permitia. Deliciava-me com sua destreza ao desviar das poças d’águas, balançando suas tranças douradas como quem compõe a melodia de sua própria finitude, encharcando meus olhos que aprendiam a dançar com devoção. E foi nessa manhã, quando ela parou, por alguns segundos, no último degrau da escadaria da escola, quando o sol, fitando-a, curvou-lhe seus primeiros raios, que decifrei o indizível sentido da aurora, esculpido e reluzido diante de sua bela perfeição.

              Ainda estava chovendo, mas, para minha sorte, conseguia ouvir o traçado do seu andar, como se desenhasse o nosso destino com o esmero e a paciência dos deuses. Não havia uma manhã em que eu me descuidasse do meu ritual, exigindo-me a perfeição milimétrica de minhas tranças, pois quem sabe um dia elas o enlaçariam, colhendo o doce mistério do seu olhar inquieto. Costumava exagerar no perfume, exalando a intimidade dos meus desejos, talvez o orvalho que caía se transformasse em cristais de lavanda, alcançando o canteiro de sua alma. Aproveitei-me do labirinto das poças d’águas e tentei dançar, como se o capricho do improviso guiasse-me para o seu compasso. E foi nessa manhã, quando ainda faltava-me um único degrau da escadaria, quando as primeiras veias do sol encorajaram-me parar por alguns segundos, que pude sentir seu olhar alvorecendo dentro de mim.


Madrugada


Foi um dia difícil, nada dava certo. Mas não era uma madrugada qualquer, mal abrira a porta e senti seu cheiro, não um aroma artificial, mas o bálsamo dos amantes que exalava em cada curva do seu corpo, atiçando cada palmo do nosso pequeno quarto. E lá estava ela, espalhada pela cama, de bruços, completamente nua, banhada pela meia luz que o velho abajur tecia. Despi-me e silenciosamente escalei seu corpo morno, atirando-me nela como quem se entrega ao mar bravio da paixão, renascendo-me na oscilação intensa de nossas ondas febris. E quando a maré estava bem cheia, quando deslizava faminto em seu leito salgado, quando cantávamos o hino dos lobos, segurei bem firme nos cachos dos seus cabelos dourados para que eu não me perdesse de suas margens.

            Foi um dia difícil, principalmente depois que ele ligou e disse que chegaria tarde. Mas não era uma madrugada qualquer, quando percebi seus passos na calçada, tirei minha roupa com a astúcia de uma presa ao sentir o faro do seu predador. Criei uma bela penumbra para que ele percebesse o eclipse do meu corpo e se ofuscasse, caindo na arapuca dos meus contornos. Ao ouvir o ranger da porta, joguei-me na cama como quem se entrega a deriva, boiando na correnteza do meu desvario e simulando o sono dos sedentos. Assim que ele remava, imergindo nas camadas de minha superfície, a espera do meu corpo se fez nau e ventania. E quando o meu sussurro perseguia o seu uivo, envolta da espuma quente que transbordava no meu cais, permiti que ele ancorasse na ilha de minhas querências para nunca mais se desprender.