terça-feira, 11 de novembro de 2014

| Edmar Conceição |

28 de outubro de 2014






Gosto dos rituais. Quando sou coagido a enfrentar centenas de páginas para uma atividade avaliativa na faculdade de Direito, faz-se necessário incrementar a madrugada: uma bebida destilada com muito gelo, flores de angélica, uma sinfonia de Bach e o disfarce esnobe e cínico de que aquele amontoado de conceitos jurídicos valha alguma coisa.

A confecção da crônica já é bem diferente. Embora também utilize os mesmos símbolos, catar palavras para expressar algo belo já é um ritual, um perfeito disfarce. Ainda que não avance na escrita, a mera promessa de uma crônica já instiga o sabor de quem se aventura nas letras. Muitas vezes, os aperitivos, por serem pequenas provocações bem caprichadas, nos tocam mais do que o prato principal.

A poesia é a arte de surpreender, perfurar o óbvio. Talvez, por isso, hoje apenas escreverei mínimas nuvens de palavras, meros rabiscos que um dia, quem sabe, façam chover.

Neste momento, enquanto folheio meu bloquinho desbotado, confio em cada reticência dele. Tem uma página dedicada a pequena bicicleta vermelha da minha infância e a insistência em pedalar nas margens do desconhecido, mesmo quando faltava destreza no guidom. Na verdade, pouco importava se ela ia me levar a lugar algum, o necessário era sair do lugar.

Noutra página, tem o choro de uma bela mulher, tirando chopp e lágrimas negras por causa da sua forte maquiagem. As lágrimas aumentavam quando ela olhava para o celular, como se estivesse lendo alguma mensagem que arranhava suas feridas. Quantos textos eu já fiz provocado pela garoa dos olhos, cheios de despedidas, chegadas, perdas, silêncios, lembranças...

Há também várias pilhérias, registros de casos engraçados colhidos das minhas diligências forenses. Encontrei um, de quando fui ajudar o cartório nos requerimentos de alistamento eleitoral. Para otimizar o tempo, chamamos de uma só vez um casal para o preenchimento do formulário. Várias perguntas monótonas foram feitas (nome, estado civil, endereço, etc), mas quando se indagou ao marido sobre o item “sexo”, ele ficou meio vacilante, sem querer responder. Quando foi questionado novamente ele lançou um olhar convicto para a esposa e disse:

- Quase todo dia! Né, amor?

Boa parte das anotações são pequenos motes, poucas palavras mendigando atenção. As lembranças de Brasília, os bilhetes de amor não entregues, o subsolo ardido de uma noite de insônia, o abraço longo dos desencontros e a quimera em alto mar.

Há um apontamento que costumo olhar com carinho. É um desenho apressado, mas me faz lembrar de uma linda barriguda florida em volta da aridez cinza dos tempos de seca. Recordo que, neste dia, fiquei com vontade de atravessar a cerca e enamorá-la, nem que fosse para tocá-la levemente, cochichar, entre seus espinhos, que ela renovava meu caminho, que o milagre do improvável deve ser sempre o nosso sonho.

Não toquei, sequer cheguei perto, lancei meu olhar como quem fita o sagrado, apenas capturei sua silhueta rabiscando-a no meu bloquinho, com a certeza de que o encanto da primavera não são as cores, mas a sua própria finitude, a urgência do belo no canteiro estreito do tempo, mesmo que venha em pequenas provocações.