terça-feira, 3 de março de 2015

| Edmar Conceição |

|17 de fevereiro de 2014 |



Solidão


Bem ti vi,*
bem ti vi andar por um jardim em flor
chamando os bichos de amor...

Era ouvindo esta canção triste e bela que costumava acordar em Coimbra. Marcos Cesário caprichava no volume e repetia dezenas de vezes. É bom lançar os primeiros passos no açoite de uma melodia que nos toca, mas admito que a cantiga ajudava pincelar Portugal com tons solitários.

Talvez por que passei mais tempo andando sozinho nas ruas lusitanas ou por que o forte inverno nos instiga a procurar abrigo dentro de nós, tive na solidão minha constante companheira. E quando um vento lhe assanha a alma e não traz resposta, tudo fica mais intenso, pois, mesmo que os anjos noturnos dancem na penumbra do tempo escondendo suas asas feridas, provocam belos prantos e descobertas.

Emocionou-me uma reportagem do Correio da Manhã, narrando a solidão de Mário Fernandes (77 anos) ao encontrar sua esposa Judite (84 anos) morta em cima de sua cama. Ele colheu uma flor amarela do seu pequeno jardim e floriu o peito de sua amada. Depois, pôs fim a sua vida.

Quando há delicadeza, são os nossos próprios abismos que nos permitem colher o brilho raro da poesia:

Bem ti quis, bem te quis
e ainda quero muito mais
Maior que a imensidão da paz
bem maior que o sol
Onde estás?

Alguém me disse que a letra desta canção foi inspirada em uma tragédia, no empurrão afiado da saudade de quem perdeu sua noiva em um acidente automobilístico. Não é difícil imaginar a solidão de um poeta perdido em um papel em branco, manchando-o, aos poucos, com dores, distâncias e promessas, apostando nos suspiros que ainda lhe restam e no avesso da despedida, seja florindo o corpo da amada no canteiro da finitude ou querendo-a ainda mais um pouco, um querer perto do impossível e maior que o sol.



* Música: Bem ti vi
  Compositor: Jorge Luiz Guimarães e Paulinho Perda Azul