terça-feira, 5 de agosto de 2014

| José António Franco |

22 de julho de 2014






era uma vez uma cobra muito magrinha e cheia de sardas no rosto que gostava muito de dar ares de cobra fina e por isso não faltava a uma única festa das muitas que se faziam nas tocas dos donos do bosque sempre prontos para dar um ar da sua graça que por vezes não era muita em contraste com o caviar e a erva dos melhores prados da vizinhança e até de mais longe que eles gostavam de oferecer nas informalidades sociais da floresta

toda a gente a conhecia por cobra sardinha mas havia gente que a tinha em baixa conta porque se dizia por entre as sombras do arvoredo que a danada da bicha gostava era de ter de tudo à fartazana por dentro e por fora e nem sequer tinha um sítio de seu para mudar a pele com a privacidade que o acto deveria exigir a qualquer cobra de bem olhem que se lhe desse para isso até soltava a pele nas clareiras mais movimentadas do bosque o que diga-se em abono da pura verdade não era de estranhar porque ela era mesmo uma infeliz deslavada e miserável e além disso ninguém estava disposto a ceder-lhe a sua intimidade doméstica para actos a que só as cobras estavam obrigadas por imperativos naturais

o que é certo é que a tal cobra sardinha magra e insinuante lá ia enroscando a comidinha diária e os haveres indispensáveis para tapar as escamas que normalmente se degradavam com o frio e a fome e o relento e lhe davam um aspecto menos vistoso e muitas vezes repelente

um belo dia de sol estava a cobra sardinha a sibilar para os transeuntes do bosque quando perante o espanto geral surgiu de trás de umas moitas uma reluzente charanga dirigida por um conhecidíssimo artista de cinema por todo o lado ele era profissionais da reportagem daquela e de muitas outras florestas ele era caçadores de beijos e de autógrafos ele era políticos conceituados ele era presidentes e mendigos ele era correctores das bolsas mais famosas e sobretudo muitos muitos foguetes a estoirarem com as copas das árvores mais altas

toda a fauna ali se reuniu de um momento para o outro até os animais emigrados tinham metido apressadas patas ao caminho para assistirem a uma festa tão catita e repentina como aquela e a banda a tocar e o foguetório num sonoro estrelejar e todos muitos felizes de patas a dar a dar e os corpos a exultar e as crias a berrar até que de repente mas mesmo muito de repente se fez um silêncio total

depois ouviu-se um cântico mui solene amplificado pela poderosíssima aparelhagem sonora lá do bosque e de um momento para o outro perante a basbaquice geral ó céus ó deuses ó nuvens ó coisas lindas ó sei lá eu bem o quê

apareceu um príncipe sim um príncipe de carne e osso

a sério

e logo a seguir o homem que abria as portas do palácio e o motorista da carruagem real e o chefe da real televisão e os amigos da corte e os escribas e comentadores e os bobos e muitas damas da corte e os amigos do alheio

e o chefe dos reais sapateiros

pois

e a seu lado um aio que salpicava esplendores de lantejoulas transportando com religioso cuidado uma almofadinha de seda sobre a qual há algo que daqui não se consegue ver mas brilha ó se brilha com aquele brilho misterioso dos contos de fadas e de banqueiros

e o chefe dos sapateiros agarra aquilo-que-brilha corre por entre a assistência experimenta aqui experimenta ali pára olha reflecte e mostra o objecto um sapato meus senhores um requintadíssimo sapato fabricado na marinha grande percorre o público com olhos cerimoniosos ergue o sapatinho um delicado sapatinho número trinta e seis bicudinho salto altinho ergue-o solene com as duas mãos numa saudação primeiro redonda e espectacular para acabar circunflexa de olhos perdidos nos píncaros das árvores mais altas em profunda concentração

é grande a expectativa

de repente arranca pela faixa central do relvado finta à esquerda flecte para a direita num ziguezague diabólico passa um passa dois o público de pé em delírio olhem só para aquele domínio da almofadinha avança mais alguns metros perscrutando os presentes por todas as alas da floresta estoira um generoso aplauso enquanto o inspirado sapateiro consegue ainda um vistoso zigue para a frente e um retumbante zague para trás

estaca

bruscamente

em frente da cobra sardinha

experimenta-lhe o sapato no pé esquerdo numa epidémica tremedeira e uma vaga de emoção incontida acaba por sacudir a assistência de alto a baixo

e vejam só ó céus ó deuses ó charangas a tocar e ó foguetes a coisar

deixem-me repetir ó céus e ó deuses e ó charangas e ó foguetes e ó tudo

é a medida caros leitores a medida exacta e indubitável é ela senhoras e senhores a cobra sardinha a cobra sardinha é a verdadeira a única a brilhante vencedora do concurso calce o sapatinho e case-se c'o príncipe


e pronto enquanto o genérico se desfaz ante os vossos olhos incrédulos nós vamos dar por encerrada a história que hoje daqui vos contámos

o narrador está sentado em chinelos de quarto de pele de gamo e veste pijama de flanela azul celeste com um breve remendo a linha castanha na perna esquerda manufacturado por mãos de fada

e já agora um adereço final


dar a bofetada e esconder a mão é de vilão mas quem mui alto quer trepar ou é macaco ou tem as vidas de um gato ou está a morrer afogado