terça-feira, 22 de julho de 2014

| José António Franco |

08 de julho de 2014






a cadela da alfredina vivia na maior das frustrações porque a dona não a deixava ir para a escola mas o pior não era isso é que a rafeirita só queria mesmo o diploma do ensino obrigatório para se poder inscrever no instituto superior de bailado lá da terra nem mais

toda a vizinhança tinha muita pena do animal e até chegaram a falar à alfredina no assunto mas ela é que não saía da dela e a pobre da cachorra sempre presa ao canil por uma corrente muito comprida lá se ia contentando com pequenas exibições para a canzoada que quando não tinha que fazer por lá aparecia para lhe acalmar o ego descontente

um belo dia de feira o júlio pavão que vivia mesmo ao lado soltou as galinhas e por distracção ou com a pressa de ir mercar com a florinda do monte velho esqueceu-se de trancar o galo na capoeira o bicho não se fez nada rogado e ala morena vai de ostentar os seus ufanos oito quilos de febra por tudo quanto fosse quintal com galinhas soltas

quis o destino que a rafeira da alfredina estivesse a ensaiar uns passos novos precisamente na altura em que o galo por lá apareceu

olhem nem vos digo nem vos conto de olhos escaqueirados pela emoção o galo nem se tinha de pé assim apanhado à sorrelfa pela frescura terna e subtil do bailado da cadela rodando com inspirada mestria na sublime cadência de uma orquídea caindo do cimo de um pinheiro bravo
vencida a natural e comovida hesitação inicial o galo atirou-se à cadela casa comigo pá vai ele assim mas a cadela sem perder a elegância nem o ritmo foi-lhe dizendo desanda ó bico frouxo e vai o galo anda filha que eu trato de ti e rodopiando a cadela responde faz-te à vida sem mim capão de peito mole e o galo não me tortures ó deusa dos animais domésticos casa comigo pá e vai a cadela faz uma pirueta no ar e cai-lhe à frente feminina e distante mas decidida olha lá rapaz como é que queres que eu case com um tipo com um bico desses que nem ovos consegue partir e vai o galo de orgulho a chispar pela rubra crista acima atira-se à corrente que prendia a cadela e à custa de tanta tanta bicada acabou por quebrar um elo e o bico

a cadela ao ver-se sem amarra fugiu sem um adeus nem o mínimo sinal de gratidão e é já cabeça de cartaz depois de ter concluído o curso superior de dança num instituto superior de bailado clandestino

o galo dilacerado pela sua masculinidade preterida e pela incapacidade dolorosa do bico acabou por entrar pouco depois na panela do júlio pavão não fosse o desgosto roer-lhe as poucas febras que lhe restavam

e assim se quebra o bico ecológico das coisas

quem mal está e mal escolhe a si se molhe porque quem a ruim perdoa a ruindade lhe aumenta e pelos vistos nem todos os ámens levam a alma ao céu