terça-feira, 24 de junho de 2014

| José António Franco |

o carapau e o molho


era uma vez um velho carapau de escabeche que de um momento para o outro se começou a dar mal com o molho

todos os outros carapaus da travessa estranharam o facto não só por ser realmente insólito mas também e sobretudo porque aconteceu com um bom carapau muito fresco e de boas famílias sobre o qual nem as piores línguas conseguiam descobrir o mínimo defeito dizia-se até que o senhor carapau teria contribuído generosamente com géneros e verbas e trabalho para a campanha de alfabetização dos jaquinzinhos e sozinho teria feito mais pela saúde do seu viveiro natal do que a dona pescada ou mesmo o senhor polvo e o dom charroco todos juntos e eles é que sim eles é que tinham a responsabilidade de zelar pela qualidade das águas naquela freguesia marítima bem como pela qualidade do pescado

o que é certo é que toda a gente continuava sem perceber as razões de tão estranho comportamento daquele peixe de formação sólida e frescura indubitável e também não faltava quem afirmasse à sucapa que tudo teria sido marosca do senhor molho de escabeche lá bem no fundo uma pessoa intratável apesar da escorregadia bondade e do paladar altamente personalizado

até que um dia apareceu nos jornais com fotografia e tudo uma folha de louro a jurar a pés juntos vejam lá bem que tinha sido por causa do filho mais novo da tónia alho uma cabeça que dava para três caçoilas de chanfana e que se vangloriava de poder envenenar o mundo só com o cheiro de um dos seus queridos dentinhos

a partir das declarações da folha de louro muitos jornais aumentaram as suas tiragens remodelaram as instalações e melhoraram o equipamento e

de repente deixou de se ouvir falar no caso

mas havia quem afirmasse que ouvia todas as noites o velhaco do vinagre a rir-se baixinho na travessa do molho

agora o júlio sardinheiro é que está lixado com o caso porque ele costumava ter a casa cheia e presentemente ninguém lhe quer comer os petiscos que ele apesar de tudo continua a preparar com todo o cuidado mas muito pouco entusiasmo

já se diz que o serafim da burra manca que tinha a outra casa de pasto lá da terra é que tinha tramado a coisa porque detestava ver a casa sempre às moscas e o negócio a atolar-se nos bolsos dos credores e por isso tinha uma raiva de morte ao desgraçado do júlio sardinheiro trabalhador limpo e bom companheiro da clientela

bem cá para mim que não devo emitir opiniões tudo teria começado no dia em que o genro do molho de escabeche que é danado para as gorduras de sardinha se envolveu de amores com a cunhada daquele tipo que costuma fazer anúncios para as conservas de espinafres aquele que até se julgava que tinha fugido para áfrica para se livrar dos impostos mas afinal o vivaço tinha-se mas é pirado para a venezuela por causa de uma loira escandinava e quando regressou vinha tesinho que nem um barrote e ainda por cima encharcadinho em vinho branco de fraca qualidade
mas continua a haver quem diga que ouve o vinagre a rir-se na travessa todas as noites baixinho
o pior é que com isto tudo o júlio sardinheiro carregou na pimenta do carapau para esconder o sabor da surrapa e o escabeche toldou-se

e o estado deprimente a que chegaram as relações do carapau com o molho respectivo não deixa prever um grande sorriso na tez do futuro lá isso não

mas adiante que se faz noite o mais engraçado nesta história toda é que a freguesia ficou muito transtornada e vai de tomar partido quer pelo molho de escabeche quer pelo carapau mergulhado no dito quer ainda por cada um dos donos das tascas e quem continua a rir-se baixinho é o finório do vinagre que ainda agora abriu um restaurante e um supermercado mesmo no caminho entre as duas tavernas

embora muito boa gente duvide um tom só se descobre depois de misturadas as tintas porque não há tolo que não tenha a sua esperteza e o que realmente é preciso é ter cuidado com os sábios de palavras sorridentes
lá isso é