sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

| João Manuel Ribeiro |

                      A Tabacaria do Alves I


Domingo que vem

com o poema de Manuel da Fonseca
podia declarar que domingo que vem
vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida,
mas não o faço porque os domingos
têm o peso imposto da ociosidade
nem eu sou homem mas anjo
e por isso incapaz de fazer o que seja
por iniciativa própria muito menos
coisas belas realmente belas
como as absurdas que o homem faz
esta minha natureza incapacitada
não me habilita para o que quer que seja
resta-me apenas domingo que vem
(pois seja) nada fazer e ser tão só
a presença invisível e aleatória
à vida de Mariazinha Santos
[a mulher do poema supracitado]

Porque não me quero matar

mato-me em cada poema porque não me quero matar
e não sei se assim confirmo ou desminto
o senhor engenheiro Álvaro de Campos [coitado]

que da morte apenas conhecia as paredes
associadas ao vácuo dinâmico do mundo
e por isso [e talvez mesmo sem isso]
a desejava para acabar entre rosas obstinado
pelo perfume do óleo das grandes máquinas elétricas
que lhe provocavam uma febre inexplicável
dessas que não conhecem a morte e apenas o limbo da sucata
mato-me em cada poema porque não quero matar
o senhor engenheiro coitado  para o que lhe havia de dar


(Pag)ode triunfal

a dolorosa luz da grande ode triunfal
torna febril a minha escrita e demente
o meu canto e as minhas ideias felizes
quisera ser pedaço de átomo azul
correia de transmissão de onomatopeias
(eh-há-hô eh-há-hô eh-há-hô eh-há-hô)
êmbolo de fúria triunfal irmão gémeo
de todas as engrenagens e dinâmicas
mas aquieto o meu júbilo eia eia eia
no burro que no quintal faz rodar a nora
sem qualquer outro mistério que haver
um burro e uma nora apesar do triunfo
das grandes máquinas eléctricas hup-lá-hô

Ah ser eu simplesmente nada em coisa nenhuma


Discordância

senhor engenheiro permita-me discordar de si
(será discordar por discordar ainda assim)
no que toca ao que lhe parece sempre melhor
a mim que não tenho nenhuma metafísica
(e imagino-o troçando do meu filosofar)
nem o impreciso embala nem basta o certo
sou homem de fumos e papéis enovelados
contento-me com apascentar horas quietas
na minha tabacaria amarelecida pela saudade
o único ciclone que não raras vezes a atravessa
vem da sua gabardine esquecida na cadeira
e dos relâmpagos acesos dos seus papelinhos
postos nos bolsos para me estalar nas mãos
ferir os olhos e inclinar os pensamentos

para além do que o cansaço me possibilita